"O Maná do Reino do Amanhã dai-nos hoje..."
Eis a oração que Jesus ensinou aos seus discípulos em Mateus 6:9-13:
"Portanto, vós orareis assim: Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome; Venha o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu; O pão nosso de cada dia nos dá hoje; E perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores; E não nos induzas à tentação; mas livra-nos do mal; porque teu é o reino, e o poder, e a glória, para sempre. Amém." (Mt 6:9-13)
Refletindo sobre esta simples, porém profunda, oração que Jesus nos instruiu, foquei-me na seguinte passagem em específico:
Lembrei-me então de algumas coisas que envolvem este verso no original grego. Lá, a expressão "o pão nosso de cada dia" é τὸν ἄρτον ἡμῶν τὸν ἐπιούσιον (tòn árton hemerôn tòn epiúsion). A palavraepioúsion, que está no acusativo da forma nominal epiousia, é muito rara, sendo unicamente encontrada no Novo Testamento, mas em nenhum outro manuscrito grego antigo. No escritos neo-testamentários, ela se encontra em duas passagens, esta do Evangelho de Mateus e outra no de Lucas 11:13, em outro relato desta oração feita por este evangelista. Ela é composta por dois morfemas,epi, "sobre, acima" e ousia, "ser, essência, existência". Uma outra tradução poderia ser, consequentemente, "o pão nosso de (para nossa) existência (ou sustento)". A palavra ousia é raramente usada no grego antigo, e mesmo assim é restrita aos círculos da filosofia da Antiga Hélade. Para queesta difícil palavra possa ser corretamente traduzida, algumas traduções podem lançar alguma luz.
"[...] o pão nosso de cada dia dai-nos hoje [...]" (Mt 6:11)
Lembrei-me então de algumas coisas que envolvem este verso no original grego. Lá, a expressão "o pão nosso de cada dia" é τὸν ἄρτον ἡμῶν τὸν ἐπιούσιον (tòn árton hemerôn tòn epiúsion). A palavraepioúsion, que está no acusativo da forma nominal epiousia, é muito rara, sendo unicamente encontrada no Novo Testamento, mas em nenhum outro manuscrito grego antigo. No escritos neo-testamentários, ela se encontra em duas passagens, esta do Evangelho de Mateus e outra no de Lucas 11:13, em outro relato desta oração feita por este evangelista. Ela é composta por dois morfemas,epi, "sobre, acima" e ousia, "ser, essência, existência". Uma outra tradução poderia ser, consequentemente, "o pão nosso de (para nossa) existência (ou sustento)". A palavra ousia é raramente usada no grego antigo, e mesmo assim é restrita aos círculos da filosofia da Antiga Hélade. Para queesta difícil palavra possa ser corretamente traduzida, algumas traduções podem lançar alguma luz.
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Pai Nosso em Hebraico nas paredes do Monastério Pater Noster, em Jerusalém. |
- Traduções já feitas
A Peshitta, a tradução para o aramaico siríaco do Novo Testamento, em sua versão padronizada, a traduziu como ܕܣܘܢܩܢܢ d'sunqanan,que significa "de nosso sustento". Mas, a versão achada no códexcuretoniano, tem ܐܡܝܢܐ ܕܝܘܡܐ , amina d'yawma, "(o pão) permanente do dia", em Mateus. Na Vulgata, Jerônimo traduz a palavra epioúsia em sua literalidade grega, supersubstantialem, que significa "mais que o necessário, o fundamental". Mas, por alguma razão, ele traduz o mesmo termo, quando este aparece em Lucas, como quotidianum, "diário".
Se tomarmos mais uma referência em uma antiga tradução da Bíblia, a efetuada para o cópta (língua egípcia, em seu último estrato linguístico, escrita em caracteres derivados do grego antigo), teremos um significado um pouco diferente. A difusão desta tradução presume-se já ter sido efetuada desde o séc. II, portanto é muito antiga. Nela, temos penoeik etnhy, "o pão nosso (do dia) que virá".
- Comentário de Jerônimo sobre o Pai Nosso
Para complicar mais ainda a situação, o famoso tradutor da versão latina que citei acima, a Vulgata, em um relato que se encontra em comentário seu sobre o Evangelho de Mateus, ele diz o seguinte:
Este Evangelho dos Hebreus foi o provável evangelho utilizado (segundo Jerônimo, em "hebraico") por uma comunidade de judeus cristãos que habitavam a Terra Santa. No relato acima, ele diz que a palavra usada por Jesus para epioúsia seria mahar. Essa palavra, provavelmente, seria uma transcrição para o latim da hebraica מחר,mahar, que significa "amanhã, dia posterior a hoje". É muito estranho ele ter dito que esta seria a palavra original do Mestre pois aparentemente o seu significado é totalmente diferente daquele presente na palavra em grego que possuímos. Mas na verdade, a solução - segundo Joachim Jeremias, em seu livro Teologia do Novo Testamento - se encontra sim nesta palavra hebraica/aramaica citada por Jerônimo. Ele afirma que existe um adjetivo, ἡ ἐπιοῦσα (he epioôsa), que na verdade é derivado de epiousia. Mas, este adjetivo significa "(o dia) que vem, o amanhã". Ele conclui, portanto, que o nome epioúsia em Mateus e Lucas, na verdade, seria a tentativa de traduzir a palavra mahar "amanhã", tendo-se em mente a prévia tradução deste termo hebraico, na Septuaginta, pelo mesmo adjetivo grego, epioûsia.
"No Evangelho que é chamado 'dos Hebreus', no lugar de 'pão supersubstantialem', eu achei mahar, que significa 'de amanhã', podendo significar o seguinte: nosso pão que era para amanhã, isto é, o futuro, dai-nos neste dia" (Sobre Mateus I, comentário sobre Mt 6:11)
Este Evangelho dos Hebreus foi o provável evangelho utilizado (segundo Jerônimo, em "hebraico") por uma comunidade de judeus cristãos que habitavam a Terra Santa. No relato acima, ele diz que a palavra usada por Jesus para epioúsia seria mahar. Essa palavra, provavelmente, seria uma transcrição para o latim da hebraica מחר,mahar, que significa "amanhã, dia posterior a hoje". É muito estranho ele ter dito que esta seria a palavra original do Mestre pois aparentemente o seu significado é totalmente diferente daquele presente na palavra em grego que possuímos. Mas na verdade, a solução - segundo Joachim Jeremias, em seu livro Teologia do Novo Testamento - se encontra sim nesta palavra hebraica/aramaica citada por Jerônimo. Ele afirma que existe um adjetivo, ἡ ἐπιοῦσα (he epioôsa), que na verdade é derivado de epiousia. Mas, este adjetivo significa "(o dia) que vem, o amanhã". Ele conclui, portanto, que o nome epioúsia em Mateus e Lucas, na verdade, seria a tentativa de traduzir a palavra mahar "amanhã", tendo-se em mente a prévia tradução deste termo hebraico, na Septuaginta, pelo mesmo adjetivo grego, epioûsia.
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"São Jerônimo estudando", afresco de Domenico Ghirlandaio (1480) |
Joachim Jeremias observa ainda que, mesmo se pensarmos que oEvangelho dos Hebreus tenha sido uma tradução para o aramaico/hebraico dos ditos originais de Jesus (seguindo a forma dos antigos targums), e não um original propriamente dito deste (assim como a Peshitta é uma tradução de manuscritos gregos, por exemplo), ainda assim o trecho da oração do Pai Nosso, supõe-se, teria sido preservado como originalmente fora recitado por Jesus, por causa da sua extensa utilização e inserção na liturgia cristã desde as primeiras comunidades. É só lembrarmos, por exemplo, que isso ocorre também com os textos gregos do Novo Testamento que possuímos, onde expressões em aramaico/hebraico originais, também utilizadas extensamente pelas primeiras comunidade de cristãos, foram preservadas neles. Entre estas expressões, estão Abba (אבא - "Óh Pai!" - Rm 8:15), Maran atha (μαραναθα - מרן אתא - "Óh Nosso Senhor! Vem!" - I Co 16:22), Hosana (הושע נאת, hoshá ná, "Salva-nos agora!" - Mt 21:9) etc. Por isso, é bem provável que a palavra mahartenha sido a palavra original que posteriormente fora traduzida para o grego como epioúsia, mas que nos foi transmitida por Jerônimo, pelas vias da tradição hebreu-cristã da Terra de Israel que hoje é desconhecida por nós. Se levarmos em conta tudo isso, juntamente com algumas evidências como a antiga tradução cópita mostrada acima, poderemos aceitar a citação de Jerônimo, que advoga sermahar a palavra original nesta passagem do Pai Nosso, como plausível e confiável!
Desse modo, poderíamos reler o trecho do Pai Nosso desta forma: "o pão nosso de amanhã dai-nos hoje". Este entendimento do versículo é bem mais lógico e condizente com o contexto dos ditos de Jesus. Nosso Senhor ensinou os seus discípulos a orarem pedindo a Deus a aproximação da vontade Dele e de Seu Reino escatológico para a realidade simples e diária (o "hoje" deles).
- O Maná que nos traz Vida
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Maná caindo do céu para aos israelitas (iluminura medieval do séc XIII). |
Pensando de forma mais profunda (num linguajar judaico, maismidráshica!), se realmente Jesus disse de o pão de amanhã, como discutimos aqui, talvez também estivesse fazendo alusão ao Maná que caia em porção dobrada na sexta-feira para que o povo descansasse no Shabat (Ex 16:4-5). Talvez Jerônimo esteja emitindo uma antiga interpretação cristã sobre esta expressão: Jesus queria ensinar que o Pão da Vida - que é a Palavra de Deus (conforme sua resposta a Satanás no deserto, em Mt 4:4) e também Ele mesmo, como a Palavra de Deus em carne, viva (Jo 6:48) - não é algo que aquele que Lhe segue experimentará, e viverá por seu sustento, somente em um Reino distante, cujo cumprimento será no cataclismo dos tempos. Não! Ele estava também ensinando que quem provasse de Suas Palavras e estivesse se sustentando Dele mesmo, como se sustenta com pão ou como os israelitas se sustentaram com o Maná no deserto, experimentaria a Eternidade desde agora.
- Sinais da Ressurreição de e em Cristo
Tomo aqui esta interpretação expandida e vou mais além. Jesus disse que alguns sinais acompanhariam aqueles que cressem Nele. Perceba: a maioria destes sinais são para que a morte fosse retardada, apontando para a Eternidade que temos já no Senhor (Mc 16:17-18 - "E estes sinais seguirão aos que crerem: Em meu nome expulsarão os demônios; falarão novas línguas; Pegarão nas serpentes; e, se beberem alguma coisa mortífera, não lhes fará dano algum; e porão as mãos sobre os enfermos, e os curarão.).
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Afresco da Igreja do São Salvador em Chora, Turquia. |
Por isso também que Paulo, mais tarde, entenderia a nossa conversão e permanência em Jesus como uma experimentação da nossa própria Ressurreição, que teria a sua concretização final no futuro. Vejamos a seguinte passagem em Colossenses onde ele expõe isso:
"Portanto, se já ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas que são de cima, onde Cristo está assentado à destra de Deus. Pensai nas coisas que são de cima, e não nas que são da terra; Porque já estais mortos, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então também vós vos manifestareis com ele em glória." (Colossians 3:1-4 )
Em uma outra passagem, Paulo afirma que a ressurreição de Jesus é a primícia, a antecipação, de outras futuras, as dos crentes (I Co 15:23). Mas aqui, Paulo começa afirmando que isso que ocorreria no futuro já ocorreu, isto é, já ressuscitamos com Cristo! O próprio Jesus indicara isso também quando disse que todos aqueles que cressem Nele, já viveriam os benefícios da Ressurreição e do Reino de Deus em seu tempo presente (Jo 5:24-26 - "[...] quem crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, e não entrará em condenação, mas passou da morte para a vida. [...] vos digo que vem a hora, e agora é, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e os que a ouvirem viverão." - grifo meu). O Apóstolo continua na passagem acima dizendo que, se estamos ressurretos em Cristo, precisamos buscar as coisas da realidade de Deus, que é "de cima", em contraste com "da terra", isto é, uma realidade sem o Reino de Deus sobre ela. Ele então conecta esta realidade já presenciada pelos crentes em Cristo com uma manifestação plena e final, ressurgindo corporalmente após mortos, na glória, de Cristo, por ocasião de Sua vinda (algo expresso também em I Ts 4:16-18).
O entendimento acima é o mesmo que rodeia às prescrições em relação à Ceia do Senhor, onde o elemento do pão é um dos seus componentes, em I Co 11. Todas as vezes que participamos da Ceia, nos tornamos participantes, de forma atemporal, do momento em que Cristo se preparava para entregar Sua própria vida em nosso favor e de Sua morte e ressurreição também. Por isso Paulo alerta aqui também o cuidado que o homem deveria ter em se examinar antes de tomar da ceia. Se o homem tomasse indignamente o cálice e o pão, ocorreria então o contrário do que estes elementos aludem: a atração da morte. É por isso que ele diz que muitos estavam padecendo de enfermidade e até mortos, pois não tinham discernido este quadro restaurador do homem em Cristo que a Ceia representa (I Co 11:30).
O Evangelho é isso: Deus, em Seu infinito amor, entrega Seu Filho para morrer e então resgatar dos grilhões do pecado aqueles que Nele cressem (Jo 3:16). A estes, o caminho a Deus estaria aberto e livre, e uma comunhão plena entre o Deus Eterno e Santo e eles seria possível (Hb 10). Então, algo maravilhoso ocorre após isso: a obra de Redenção de Cristo quebra as barreiras temporais e geográficas, e o longínquo Reino de Deus, quando todos de todas as nações conheceriam a Deus e seriam plenos Nele (época vislumbrada pelo profeta Jeremias, conforme Jr 31:31-34) pode ser experimentado na vida de cada um de nós hoje, crentes Nele, e expandido onde quer que formos (Cl 1:23-29). Podemos implantar o Reino de Deus aqui, "puxá-lo" de cima, dos Céus, para a Terra, como Jesus nos ensinou a orar e pedir ao Pai! Aleluia!
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